Prof. Ms. José Guilherme de A. Almeida

INTRODUÇÃO

Falar de técnica e de unção no mesmo texto soa como uma tentativa de unir duas coisas opostas. Muitos cristãos olham para esses termos como qualidades que não podem conviver juntas, ou que, quando convivem, uma parece ser mais importante do que a outra. Mas como a Bíblia encara isso? Como nossos antepassados olhavam para a técnica e para a unção? 

Neste texto vou trazer algumas breves reflexões a fim de nos ajudar a pensar se e como esses dois termos, essas duas perspectivas, podem caminhar juntos nos ministérios de arte, bem como, em todos os demais ministérios e na vida cristã.

O CONCEITO DE TÉCNICA

Eis que chamei pelo nome a Beseleel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá. Eu o enchi com o espírito de Deus em sabedoria, entendimento e conhecimento para toda espécie de trabalho (Êxodo 31:2-3 – BJ).

O primeiro artista reconhecido na Bíblia foi Beseleel (ou Bezalel) que, segundo Êxodo 31:1-5, foi escolhido pelo próprio Deus para realizar toda espécie de trabalho, constituindo-se como o artesão chefe que fez e comandou a produção do Tabernáculo.

Quando a Bíblia nos descreve para quê Bezalel foi cheio do Espírito, ela diz que foi para todo tipo de “trabalho” (versão BJ), de “artifício” (versão ARC e NAA) ou com plena “capacidade artística” (versão NVI). Esses termos apontam para um tipo de trabalho diferente da ideia que temos hoje. Moisés não descreveu esse episódio pensando em um tipo de trabalho para pagar as contas, mas sim de um trabalho especializado, um fazer cheio de conhecimento, que exige uma habilidade especial. Não é à toa que a sua execução demandava “sabedoria, entendimento e conhecimento”. 

No comentário de Cox (2017, p.222) sobre esta passagem, o autor nos diz que:

Para fazer com precisão os muitos detalhes exigidos na construção do Tabernáculo e de todas as suas mobílias e acessórios, Moisés precisava de trabalhadores especializados. Deus não ia produzir este lugar de adoração mediante um ato milagroso do seu poder, mas por meio de homens capacitados para o seu trabalho (…). Deus não faz para suas criaturas o que elas podem fazer por si mesmas.

Na mesma direção, Schaeffer (2010, p.23) comenta:

Às vezes é tentador lermos a Bíblia como um “livro sagrado”, tratando os relatos históricos como se fossem situações celestiais sem relação com a realidade terrena. Entretanto, quando Deus ordenou que estas obras fossem construídas, algum artista teve de fazer isso (…). Os querubins da arca não caíram do céu. Alguém precisou sujar as mãos; alguém teve de resolver os problemas técnicos. 

Podemos então entender a técnica como um “saber fazer”, como um conjunto de caminhos, de formas de trabalho que já foram criadas, testadas e organizadas por alguém. Técnica então é diferente de excelência. Excelência é quando eu dou o meu melhor para Deus, quando uso tudo o que está a minha disposição para honrar ao nome dEle. 

Quanto mais técnica eu tiver, quanto melhor desenvolvidas forem as minhas habilidades, melhores coisas eu poderei fazer para honrar a Deus. Por isso eu preciso buscar a técnica, não para ser mais excelente do que aquele que não tem, mas dar o melhor que eu posso para Deus. 

Excelência então é algo que eu preciso buscar, e a técnica é uma das dimensões da excelência que eu preciso adquirir. Como Cox (2017) afirma, Deus não vai assumir uma responsabilidade que é minha enquanto ser humano. Isso indica que eu preciso imprimir algum esforço, algum investimento para poder fazer, ou para poder fazer ainda melhor aquilo que Deus deseja de mim. Quem tem a oportunidade de adquirir mais técnica e escolhe não ter, comete o pecado da negligência. 

A NOSSA TÉCNICA NÃO VEM DE DEUS

Bezalel fez obras de uma dificuldade técnica muito elevada, como por exemplo, a Arca da Aliança, cuja estrutura era de madeira de acácia, uma árvore espinhosa e de madeira rígida, e foi coberta de ouro puro (Êxodo 25:10-22). Ele fez ainda candelabros, bacias, mesas, véus, tecidos… Todas obras de arte que demandam uma habilidade apurada. Contudo, é interessante pensar que nenhuma dessas técnicas chegou até Bezalel por revelação divina. Ele certamente investiu tempo estudando e treinando para poder dominar tais técnicas. 

Vale lembrar que a Bíblia cita trabalhos em madeira (Gênesis 6:14; Êxodo 7:19) e ouro (Gênesis 24:35 e 41:42) muito antes de Bezalel ser chamado para construir o tabernáculo e seus utensílios, assim como, a história revela que os conhecimentos técnicos para usar metais preciosos, madeira e tecidos se desenvolveram junto a própria humanidade, muito antes de Bezalel nascer (HARRISON, 2010).

Isso indica que as técnicas foram construídas ao longo da história da humanidade e passadas de pai para filho, de mestre para aprendiz. Assim como Bezalel e Aoliabe foram impulsionados pelo Espírito para ensinar outros (Êxodo 35:34), alguém os ensinou. Ainda que eles tenham aperfeiçoado ou criado novas técnicas, só poderiam melhorar algo a partir do que aprenderam com seus antepassados. 

Essa capacidade criativa, de produzir conhecimento, de inventar e aperfeiçoar técnicas é parte da essência do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:27), e faz parte do nosso chamado no Éden para desenvolver a criação (Gênesis 1:28-30). Nós criamos técnicas para poder trabalhar na terra, para criar animais, para cozinhar, para manifestar a criatividade inserida em nós por Deus. Não foi Deus quem fez, mas graças a Ele nós podemos produzi-las.

Deus pode dar conhecimento técnico para alguém que nunca estudou? Sim. Ele pode todas as coisas, porém, não foi este o caminho que o Soberano Criador estabeleceu como padrão para a humanidade. A Bíblia valoriza o ensino de pai para filho (Provérbios 1:8-19, 22:6, 23:22), valoriza a sabedoria dos anciãos e das autoridades instituídas (Levítico 19:32; Deuteronômio 17:12; Provérbios 22:17) e critica os mestres que falham em sua tarefa de ensinar (Oséias 4:6; 2 Pedro 2). 

Podemos ainda afirmar que não há nada de errado em aprender as técnicas desenvolvidas pelos seres humanos (sejam eles cristãos ou não), ainda que elas também sejam usadas para propósitos errados, como é o caso do bezerro de ouro, construído com as mesmas técnicas usadas para fazer os utensílios do Tabernáculo de Moisés (Êxodo 32). O que fazemos com a técnica que temos, quem adoramos através delas é que faz toda a diferença. Não é forma de fazer, é quem faz.

Melhor ainda é observarmos que grande parte dos homens e mulheres de Deus relatados na Bíblia foram excelentes em suas atividades terrenas: Abraão foi um rico fazendeiro, Moisés um grande líder, Bezalel um grande artesão, José um renomado administrador, Salomão um sábio admirado entre as nações…

Como abordei em um trabalho anterior, Deus é o primeiro artista (ALMEIDA, 2017), e ao criar o Universo, também demonstrou técnicas diferentes. Ao separar a luz das trevas, ao criar os astros e estrelas, ao dar vida às plantas e animais, Ele simplesmente ordenou (Gênesis 1:2-25). Deus usou a técnica do falar: “Deus disse haja… e houve”. Contudo, ao criar o ser humano, mudou a técnica, colocou a mão na massa e, ao invés de ordenar que houvesse vida, Ele a soprou (Gênesis 2:7). Deus é criativo por excelência. 

O CONCEITO DE UNÇÃO

Agora, se Deus não ensinou as técnicas a Bezalel, qual então foi o Seu papel quando o chamou? Capacitá-lo de forma sobrenatural, não ensinando técnicas, mas aprimorando algo que ele já tinha, elevando as obras de Bezalel para um nível de qualidade que apenas o poder do Espírito poderia fazer, e ainda, direcionando-o para os propósitos do Reino de Deus. Aí entra a unção. 

No Antigo Testamento, a unção era um ato simbólico de derramar óleo sobre pessoas e coisas para consagrá-las a Deus. Assim aconteceu com o Tabernáculo. Logo que Moisés o armou, óleo foi derramado em todos os seus utensílios e nos sacerdotes escolhidos para que fossem separados para o Senhor:

Pegue o óleo da unção, e unja o tabernáculo e tudo o que nele está, e consagre-o com todos os seus pertences; e será santo. Vista Arão com as vestes sagradas, unja e consagre-o para que me sirva como sacerdote. Faça com que também os filhos de Arão se aproximem, vista-os com as túnicas, e unja-os assim como você ungiu o pai deles, para que me oficiem como sacerdotes; sua unção lhes será por sacerdócio perpétuo de geração em geração (Êxodo 40:9, 13-15 – NAA).

Os reis de Israel, a começar por Saul, Davi e Salomão, foram ungidos antes de assumir o trono (1 Samuel 10:1, 16:12-13 e 1 Reis 1:28-40). Elias ungiu Eliseu como profeta e seu sucessor (1 Reis 19:16). Da mesma forma, Jesus é identificado como o ungido de Deus, pois Messias (em hebraico) e Cristo (no grego) significam “Ungido”. E por meio de Jesus nós também somos ungidos de Deus: 

Ora, é Deus que faz que nós e vocês permaneçamos firmes em Cristo. Ele nos ungiu, nos selou como sua propriedade e pôs o seu Espírito em nossos corações como garantia do que está por vir (2 Coríntios 1:21-22 – NVI). 

Youngblood (2004) correlaciona a unção do Antigo Testamento com o Espírito Santo derramado no Novo Testamento. Veja que Jesus foi ungido pelo Espírito Santo (Lucas 4:18-19), e da mesma forma, a unção que recebemos de Jesus é através do derramar do Espírito (1 João 2:20, 27). É Ele ainda que nos permite ser efetivamente santos, ao completar a obra de Cristo em nossos corações (Atos 1:8, Romanos 8:29). Não à toa, o óleo é um dos símbolos do Espírito (CHO, 2007). 

A partir destes textos podemos entender que a unção não é algo passageiro, não é algo que simplesmente ocorre em um momento de poder, de ação do Espírito. Unção é um estado de vida, é ser um cristão verdadeiro, que recebeu o Espírito Santo dentro de si e que vive a partir dEle. É ser separado para Deus, é ser santo porque Ele é santo (Levítico 11:45). O Espírito Santo não vai embora, então uma unção momentânea não é excelente. O cristão verdadeiro é sempre casa de Deus, e Sua unção permanece em nós para sempre e em tudo o que nós fazemos (1 João 2:27). 

De modo nenhum isso significa que não possa existir algum momento em que o Espírito Santo vá se mover de forma mais intensa, mais aparente. Existem momentos em que Ele “derrama uma unção específica”, como costumamos dizer no jargão cristão, porém, este mover momentâneo não é referência da nossa qualidade enquanto cristãos. Afinal, o Espírito já usou Sansão que, de servo verdadeiro de Deus não tinha nada (Juízes 13-16), e até mesmo uma jumenta (Números 22:27-33). 

Na verdade, o Espírito age onde quer, da forma que quer e com quem quer (João 3:8). Pouco podemos influenciar neste tipo de derramar, pois depende do desejo do Senhor, dos Seus planos. A nós cabe estar disponíveis para que Ele faça o que planejou em Sua soberana sabedoria. Esta é a nossa unção: a consagração diária e verdadeira, a separação do pecado, vivendo uma vida conforme a vontade do Pai que reflete o caráter de Jesus.

Então, ser excelente enquanto cristão demanda ser, primeiramente, um cristão verdadeiro, um ungido de Deus que está apto para fazer a obra do Evangelho conforme a Lei do Senhor. Unção é, portanto, a outra dimensão da excelência.

TÉCNICA E UNÇÃO ANDAM JUNTAS

Agora chegamos na grande verdade do Evangelho: não existe separação entre a vida cristã e a vida secular (SCHAEFFER, 2008). Não podemos simplesmente separar algumas formas de fazer como espirituais, e outras formas de fazer como do mundo. Somos cristãos o tempo todo, seja na igreja, em casa, no trabalho, etc. Todas as áreas da nossa vida são espirituais.

Nas palavras de Rookmaaker (2018, p.184) “a Bíblia ensina que confessamos com a boca o que cremos com o coração. Há um aspecto interior e um aspecto exterior de nossa fé e os dois são um”.

Jesus morreu na cruz para restaurar o nosso ser por inteiro, e é somente por conta do poder do Messias e da amplitude do Seu sacrifício que todas as áreas da nossa vida estão submetidas ao Seu senhorio. É somente por Ele que podemos ser seres humanos integrais novamente (SCHAEFFER, 2010; ROOKMAAKER, 2018).

Assim sendo, não podemos separar a forma de fazer (técnica) de quem nós somos (ungidos de Deus, cristãos). A nossa excelência depende de conjugarmos a qualidade no fazer e no ser, a excelência na técnica e na unção. 

O Espírito Santo nos ajuda, nos capacita a adquirir ainda mais qualidade na técnica que conhecemos. Foi isso que Ele fez a Bezalel e a tantos outros na Bíblia. Essa capacitação é um presente, um dom, mas também deve ser aprimorada, como nos diz a Parábola dos Talentos (Mateus 25:14-30).

Da mesma forma, ter unção não é fazer com uma técnica diferente do mundo, mas usar a mesma técnica, o mesmo conhecimento da melhor forma que eu posso, para um propósito mais elevado, direcionado conforme os princípios do Reino de Deus e com subsídios do Espírito Santo. Por exemplo, eu escrevo este texto em português, não porque é uma língua ungida, mas porque é a língua que eu e você (que lê o meu texto) falamos em comum. Adiantaria escrever este texto em hebraico? Você o leria se estivesse em grego?

A Bíblia foi escrita predominantemente em hebraico (Antigo Testamento) e em grego (Novo Testamento) porque eram as línguas usadas no tempo em que seus livros foram escritos, não porque eram línguas ungidas. Respeitando a língua e o pensamento de cada época, há um grande conhecimento técnico aplicado nos vários livros do Cânon. Há poesias das mais diversas, há histórias, parábolas, cânticos, biografias, genealogias… Uma riqueza de estilos e formas de escrita que não descarta a unção. 

Ao mesmo tempo, a unção não está na técnica de escrita da Bíblia, mas nos autores que foram inspirados por Deus para esta tarefa. Contudo, a aplicação deles para cumprir esse chamado com qualidade, encontrando a melhor forma, a melhor técnica para escrever o texto bíblico, teve como resultado a riqueza literária que temos em nossas mãos hoje. A Bíblia é uma obra de arte, rica em técnica e em unção.

Quando eu, um ungido do Senhor, uso toda a técnica que adquiri associada a capacitação sobrenatural do Espírito Santo que habita em mim, tenho a possibilidade de fazer coisas incríveis, aos olhos de Deus e dos homens. E ao fazer qualquer obra sob a direção e a unção de Deus, para honrar e glorificar o Seu nome, é como se Ele próprio estivesse fazendo.

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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, José Guilherme de A. De artista e de louco, todo mundo tem um pouco. In: DIOGO, Adriana P. (Org.). A arte no contexto cristão. Goiânia: Centro Cultural Beneficente Rhema, 2017.

CHO, Paul Y. O Espírito Santo, meu companheiro: conheça melhor o Espírito Santo e seus dons. São Paulo: Editora Vida, 2007. 

COX, Leo G. O livro de Êxodo. In: Comentário Bíblico Beacon – Gênesis a Deuteronômio – volume 1. 1. ed. 5. reimp. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.

HARRISON, R. K. Tempos do Antigo Testamento – um contexto social, político e cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2010.

ROOKMAAKER, H. R. O Dom Criativo. Brasília, DF:Monergismo, 2018

SCHAEFFER, Francis A. A Arte e a Bíblia. Viçosa, MG: Ultimato, 2010.

SCHAEFFER, Frank. Viciados em mediocridade. São Paulo: W4 Editora, 2008.

YOUNGBLOOD, Ronald F (Editor). Dicionário Ilustrado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2004.